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Title: Livro de Sóror Saüdade
Author: Espanca, Florbela (1894-1930)
Date of first publication: 1923
Place and date of edition used as base for this ebook: Coimbra: Gonçalves, 1934 (Sonetos Completos)
Date first posted: 4 June 2008
Date last updated: 4 June 2008
Project Gutenberg Canada ebook #126

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Titre: Livro de Sóror Saüdade
Auteur: Espanca, Florbela (1894-1930)
Date de la première publication: 1923
Lieu et date de l'édition utilisée comme modèle pour ce livre électronique: Coimbra: Gonçalves, 1934 (Sonetos Completos)
Date de la première publication sur Project Gutenberg Canada: 4 juin 2008
Date de la dernière mise à jour: 4 juin 2008
Livre électronique de Project Gutenberg Canada no 126

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[Pg 41]

LIVRO DE SÓROR SAÜDADE

(1923)


de Florbela Espanca

Nota prévia: Este livro foi publicado na colectânea Sonetos Completos. Coimbra, 1934: Livraria Gonçalves.


Irmã, Sóror Saüdade, ah! se eu pudesse
Tocar de aspiração a nossa vida,
Fazer do mundo a Terra Prometida
Que ainda em sonho às vezes me aparece!


Américo Durão.

Il n'a pas à se plaindre celui qui attend
un sentiment plus ardent et plus généreux.
Il n'a pas à se plaindre celui qui attend le
désir d'un peu plus de bonheur, d'un peu plus
de beauté, d'un peu plus de justice.


Maeterlinck—La Sagesse et la Destinée.


Índice

SÓROR SAÜDADE
O NOSSO LIVRO
O QUE TU ÉS
FANATISMO
ALENTEJANO
FUMO
QUE IMPORTA?...
MEU ORGULHO
OS VERSOS QUE TE FIZ
FRIEZA
O MEU MAL
A NOITE DESCE
CARAVELAS
INCONSTÂNCIA
O NOSSO MUNDO
PRINCE CHARMANT...
ANOITECER
ESFINGE
TARDE DEMAIS
CINZENTO
NOTURNO
MARIA DAS QUIMERAS
SAÜDADES
RUÍNAS
CREPÚSCULO
ÓDIO?
RENÚNCIA
A VIDA
HORAS RUBRAS
SUAVIDADE
PRINCESA DESALENTO
SOMBRA
HORA QUE PASSA
DA MINHA JANELA
SOL POENTE
EXALTAÇÃO

[Pg 45]

SÓROR SAÜDADE

A Américo Durão.

Irmã, Sóror Saüdade me chamaste...
E na minh'alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fôsse
A luz do próprio sonho que sonhaste.

Numa tarde de outono o murmuraste:
Tôda a mágoa do outono êle me trouxe:
Jamais me hão de chamar outro mais doce:
Com êle bem mais triste me tornaste...

E baixinho, na alma de minh'alma,
Como bênção de sol que afaga e acalma,
Nas horas más de febre e de ansiedade,

Como se fôssem pétalas caindo,
Digo as palavras dêsse nome lindo
Que tu me deste: Irmã, Sóror Saüdade...


O NOSSO LIVRO

A A. G.

Livro do meu amor, do teu amor,
Livro do nosso amor, do nosso peito...
Abre-lhe as fôlhas devagar, com geito,
Como se fôssem pétalas de flor.

Olha que eu outro já não sei compor
Mais santamente triste, mais perfeito.
Não esfolhes os lírios com que é feito
Que outros não tenho em meu jardim de dor!

Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!

Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
«Versos só nossos, só de nós os dois!...»



O QUE TU ÉS

És Aquela que tudo te entristece,
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada merece.

Aquela que o sol claro entenebrece,
A que nem sabe a estrada que ora trilha,
Que nem um lindo amor de maravilha
Sequer deslumbra, e ilumina e esquece!

Mar-Morto sem marés nem ondas largas,
A rastejar no chão, como as mendigas,
Todo feito de lágrimas amargas!

És ano que não teve primavera...
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!...



FANATISMO

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida,
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já tôda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

«Tudo no mundo é frágil, tudo passa...»
Quando me dizem isto, tôda a graça
Duma bôca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de-rastros:
«Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Principio e Fim!...»



ALENTEJANO

Á Buja.

Deu agora meio-dia; o sol é quente
Beijando a urze triste dos outeiros.
Nas ravinas do monte andam ceifeiros
Na faina, alegres, desde o sol nascente.

Cantam as raparigas, brandamente,
Brilham os olhos negros, feiticeiros;
E há perfis delicados e trigueiros
Entre as altas espigas d'oiro ardente.

A terra prende aos dedos sensuais
A cabeleira loira dos trigais
Sob a bênção dulcíssima dos céus.

Há gritos arrastados de cantigas...
E eu sou uma daquelas raparigas...
E tu passas e dizes: «Salve-os Deus!»



FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois vélhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E êle é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...



QUE IMPORTA?...

Eu era a desdenhosa, a indiferente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão,
Como bate no peito à outra gente.

Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de desejo ou de emoção.
Emquanto as asas loiras da ilusão
Abrem dentro de mim ao sol nascente.

Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte:
Como nascida em carinhoso monte,
Tôda ela é riso e é frescura e graça!

Nela refresca a bôca um só instante...
Que importa?... Se o cansado viandante
Bebe em tôdas as fontes... quando passa?...



MEU ORGULHO

Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não me lembrar! Em tardes dolorosas
Eu lembro-me que fui a primavera
Que em muros vélhos fêz nascer as rosas!

As minhas mãos outrora carinhosas.
Pairavam como pombas... Quem soubera
Porque tudo passou e foi quimera,
E porque os muros vélhos não dão rosas!

São sempre os que eu recordo que me esquecem...
Mas digo para mim «não me merecem...»
E já não fico tão abandonada!

Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sòzinha,
E também é nobreza não ter nada!



OS VERSOS QUE TE FIZ

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha bôca tem p'ra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim p'ra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sêdas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos p'ra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não t'os digo ainda...
Que a bôca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!



FRIEZA

Os teus olhos são frios como as espadas,
E claros como os trágicos punhais;
Têm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas.

Vejo nêles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença,
Que viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
«Ah! Quem me dera, Irmã amar assim...»



O MEU MAL

A meu Irmão.

Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,
Eu sei o nome ao meu estranho mal:
Eu sei que fui a renda dum vitral,
Que fui cipreste e caravela e dor!

Fui tudo que no mundo há de maior;
Fui cisne e lírio e águia e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou um cínico riso de Chamfort...

Fui a heráldica flor de agrestes cardos,
Deram as minhas mãos aroma aos nardos...
Deu côr ao eloendro a minha bôca...

Ah! De Boabdil fui lágrima na Espanha!
E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha!
Mágoa não sei de quê! Saüdade louca!



A NOITE DESCE

Como pálpebras roxas que tombassem
Sôbre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilaz,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha bôca!



CARAVELAS

Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho pais que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.

Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as tórres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim êste Mar Morto:
Mar sem marés, sem vagas e sem pôrto
Onde velas de sonhos se rasgaram!

Caravelas doiradas a bailar...
Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lançei à vida e não voltaram!...



INCONSTÂNCIA

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a bôca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E êste amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também... nem eu sei quando...



O NOSSO MUNDO

Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Poisando em ti o meu olhar eterno
Como poisam as fôlhas sôbre os lagos...

Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e presagos!

A Vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos.
Bôcas unidas hemos de bebê-la!

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor!... As nossas bôcas juntas!...



PRINCE CHARMANT...

A Raúl Proença.

No lânguido esmaecer das amorosas
Tardes que morrem voluptuosamente
Procurei-O no meio de tôda a gente.
Procurei-O em horas silenciosas!

Ó noites da minh'alma tenebrosas!
Bôcas sangrando beijos, flor que sente...
Olhos postos num sonho, humildemente...
Mãos cheias de violetas e de rosas...

E nunca O encontrei!... Prince Charmant...
Como audaz cavaleiro em vélhas lendas
Virá, talvez, nas névoas da manhã!

Em tôda a nossa vida anda a quimera
Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas...
—Nunca se encontra Aquêle que se espera...—



ANOITECER

A luz desmaia num fulgor d'aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bênçãos d'amor p'ra tôda a gente!
E a minha alma sombria e penitente
Soluça no infinito desta hora...

Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saüdades de saüdades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...



ESFINGE

Sou filha da charneca erma e selvagem:
Os giestais, por entre os rosmaninhos,
Abrindo os olhos d'oiro, p'los caminhos,
Desta minh'alma ardente são a imagem.

E ansiosa desejo—ó vã miragem—
Que tu e eu, em beijos e carinhos.
Eu a Charneca, e tu o Sol, sòzinhos,
Fôssemos um pedaço da païsagem!

E à noite, à hora doce da ansiedade,
Ouviria da bôca do luar
O De Profundis triste da saüdade...

E, à tua espera, emquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar...
Esfinge olhando, na planície enorme...



TARDE DEMAIS

Quando chegaste emfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E p'ra o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...

Chegaste, emfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que nâo pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia d'oiro dos desertos
Procurara-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a bôca em flor!

E há cem anos que eu era nova e linda!...
E a minha bôca morta grita ainda:
Porque chegaste tarde, ó meu Amor?!...



CINZENTO

Poeiras de crepúsculos cinzentos.
Lindas rendas vèlhinhas, em pedaços,
Prendem-se aos meus cabelos, aos meus braços,
Como brancos fantasmas, sonolentos...

Monges soturnos deslizando lentos,
Devagarinho, em misteriosos passos...
Perde-se a luz em lânguidos cansaços...
Ergue-se a minha cruz dos desalentos!

Poeiras de crepúsculos tristonhos,
Lembram-me o fumo leve dos meus sonhos,
A névoa das saüdades que deixaste!

Hora em que o teu olhar me deslumbrou...
Hora em que a tua bôca me beijou...
Hora em que fumo e névoa te tornaste...



NOTURNO

Amor! Anda o luar, todo bondade,
Beijando a terra, a desfazer-se em luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que andam pisando as ruas da cidade!

E eu ponho-me a pensar... Quanta saüdade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Nêles pregaste a minha mocidade!

Minh'alma, que eu te dei, cheia de mágoas,
É nesta noite o nenúfar dum lago
Estendendo as asas brancas sôbre as águas!

Poisa as mãos nos meus olhos, com carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho...



MARIA DAS QUIMERAS

Maria das Quimeras me chamou
Alguém... Pelos castelos que eu ergui,
P'las flores d'oiro e azul que a sol teci
Numa tela de sonho que estalou.

Maria das Quimeras me ficou;
Com elas na minh'alma adormeci.
Mas, quando despertei, nem uma vi,
Que da minh'alma, Alguém, tudo levou!

Maria das Quimeras, que fim deste
Ás flores d'oiro e azul que a sol bordaste,
Aos sonhos tresloucados que fizeste?

Pelo mundo, na vida, o que é que esperas?...
Aonde estão os beijos que sonhaste,
Maria das Quimeras, sem quimeras?



SAÜDADES

Saüdades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se êle deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fôsse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saüdade andasse prêsa a mim!



RUÍNAS

Se é sempre outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sôbre as ruínas crescer heras.
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um continuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais altos do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda bôca!
Sonhos!... Deixa-os tombar... deixa-os tombar...



CREPÚSCULO

Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Borboletas de sol, de asas magoadas.
Poisam nos meus, suaves e cansadas,
Como em dois lírios roxos e dolentes...

E os lírios, fecham... Meu amor não sentes?
Minha bôca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saüdades de doentes...

O silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sêdas, arrastando...

E a tua bôca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente, palpitando...



ÓDIO?

Á Aurora Aboim.

Ódio por êle? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado.
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto...

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado,
Como um soturno e enorme Campo Santo!

Ah! Nunca mais amá-lo é já bastante!
Quero senti-lo doutra, bem distante,
Como se fôra meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saüdade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda.
Ódio por êle? Não... não vale a pena...



RENÚNCIA

A minha mocidade outrora eu pus
No tranqüilo convento da tristeza;
Lá passa dias, noites, sempre prêsa,
Olhos fechados, magras mãos em cruz...

Lá fora, a Lua, Satanaz, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza...
É como um beijo ardente a Natureza...
A minha cela é como um rio de luz...

Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!
Empalidece mais! E, resignada,
Prende os teus braços a uma cruz maior!

Gela ainda a mortalha que te encerra!
Enche a bôca de cinzas e de terra,
Ó minha mocidade tôda em flor!



A VIDA

É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés d'alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo um «Pedro Sem»,
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo donde vem!

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saüdade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...

Amar-te a vida inteira eu não podia.
A gente esquece sempre o bem dum dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a vida!...



HORAS RUBRAS

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço as olaias rindo desgrenhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes.
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p'las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sêdas puras...

Sou chama e neve branca e misteriosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!



SUAVIDADE

Poisa a tua cabeça dolorida
Tão cheia de quimeras, de ideal,
Sôbre o regaço branco e maternal
Da tua doce Irmã compadecida.

Hás de contar-me nessa voz tão qu'rida
A tua dor que julgas sem igual,
E eu, p'ra te consolar, direi o mal
Que à minha alma profunda fêz a Vida.

E hás de adormecer nos meus joelhos...
E os meus dedos enrugados, vélhos,
Hão de fazer-se leves e suaves...

Hão de pousar-se num fervor de crente.
Rosas brancas tombando docemente,
Sôbre o teu rosto, como penas d'aves...



PRINCESA DESALENTO

Minh'alma é a Princesa Desalento,
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
É magoada e pálida e sombria,
Como soluços trágicos do vento!

É frágil como o sonho dum momento;
Soturna como preces de agonia,
Vive do riso duma bôca fria:
Minh'alma é a Princesa Desalento...

Altas horas da noite ela vagueia...
E ao luar suavíssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!

O luar ouve a minh'alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à tua porta...



SOMBRA

De olheiras roxas, roxas, quási pretas,
De olhos límpidos, doces, languescentes,
Lagos em calma, pálidos, dormentes.
Onde se debruçassem violetas...

De mãos esguias, finas hastes quietas,
Que o vento não baloiça em noites quentes...
Nocturno de Chopin... risos dolentes...
Versos tristes em sonhos de Poetas...

Beijo doce de aromas perturbantes...
Rosal bemdito que dá rosas... Dantes
Esta era Eu e Eu era a Idolatrada!...

Oh tanta cinza morta... o vento a leve!
Vou sendo agora em ti a sombra leve
D'alguém que dobra a curva duma estrada...



HORA QUE PASSA

Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura,
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!

Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh'alma triste, dolorida e escura,
Minh'alma sem amor é cinza e pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!

Que tragédia tão funda no meu peito!...
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!

Deus! Como é triste a hora quando morre...
O instante que foge, vôa, e passa...
Fiozinho d'água triste... a vida corre...



DA MINHA JANELA

Mar alto! Ondas quebradas e vencidas
Num soluçar aflito e murmurado...
Vôo de gaivotas, leve, imaculado,
Como neves nos píncaros nascidas!

Sol! Ave a tombar, asas já feridas,
Batendo ainda num arfar pausado...
Ó meu doce poente torturado
Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!

Meu verso de Samain cheio de graça,
'Inda não és clarão já és luar
Como um branco lilaz que se desfaça!

Amor! Teu coração trago-o no peito...
Pulsa dentro de mim como êste mar
Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!...



SOL POENTE

Tardinha... «Ave Maria, Mãe de Deus...»
E reza a voz dos sinos e das noras...
O sol que morre tem clarões d'auroras,
Águia que bate as asas pelos céus!

Horas que tem a côr dos olhos teus...
Horas evocadoras doutras horas...
Lembranças de fantásticos outroras,
De sonhos que não tenho e que eram meus!

Horas em que as saüdades, p'las estradas
Inclinam as cabeças mart'risadas
E ficam pensativas... meditando...

Morrem verbenas silenciosamente...
E o rubro sol da tua bôca ardente
Vai-me a pálida bôca desfolhando...



EXALTAÇÃO

Viver!... Beber o vento e o sol!... Erguer
Ao céu os corações a palpitar!
Deus fêz os nossos braços p'ra prender,
E a bôca fêz-se sangue p'ra beijar!

A chama, sempre rubra, ao alto a arder!...
Asas sempre perdidas a pairar,
Mais alto para as estrêlas desprender!...
A glória!... A fama!... O orgulho de criar!...

Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos extáticos, pagãos!...

Trago na bôca o coração dos cravos!
Boémios, vagabundos, e poetas:
—Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!...



Notas de transcrição

Apliquei a errata existente no final da obra completa nas páginas correspondentes:





[End of Livro de Sóror Saüdade by Florbela Espanca]
[Fin de Livro de Sóror Saüdade par Florbela Espanca]